domingo, 16 de setembro de 2007

Duelos sentimentais

A calmaria de uma tarde se espalhou por todo o corpo minutos após a refeição. Todo domingo era mais ou menos igual àquele, a reviravolta estava próxima e seria cada vez mais inevitável.
Deu-se o tempo de trinta minutos e os carboidratos absorvidos já haviam sido sintetizados e emanavam energia de sobra, os sentimentos transbordaram a injeção dada pelos carboidratos e foi dada a largada para dissipar o montante de energia.

Começou pela visão, a televisão já não estava muito agradável: o futebol xoxo demais, o programa do Gugu era um museu da burrice nacional, nos canais de filmes só reprises de segunda, desenhos infantis não são mais os mesmos há anos e o efeito da MTV não detém mais a atenção. Deu-se aí um gosto peculiar pelo observar do poente pela varanda – a primeira grande luta; o tato entra em cena. O friozinho do vento despertou uma vontade imensa de sair à rua para andar, correr, suar, lavar e descansar. Ao mesmo tempo a visão tentava confortar-se na breve apreciação e, aliada da lembrança, fez uma tradicional manobra de recusar a ação às vias do manto nostálgico.

Apegada ao poder da primeira imagem e não tão treinada a uma profunda interpretação e aprendizado, a visão foi iludida pela lembrança – uma espécie de Pandora desse jogo -, um filme resgatado do místico labirinto das memórias foi ativado e retratava uma tarde igual na qual andar de skate foi certamente a melhor pedida do dia. Vitória momentânea para o tato. Skate em baixo dos braços e muitas ladeiras pela frente. Não seria assim tão fácil, os outros sentimentos deveriam conceder.

A ala da audição estava submissa a visão e a sua livre escolha de canais de televisão e reivindicou um incentivador a aventura iminente – Ipod. Atendido, o problema foi a escolha; o conselho da audição é formado por inumeráveis membros e nunca conseguem firmar um pacto comum. Absolutamente populistas, primam pelo poder de afogar a oposição quando certo gênero ou artista cai no gosto popular, ou seja, entra em harmonia com o resto do corpo. O conselho começou a crescer geometricamente com a MTV, ganhou maturidade pelo Napster e atingiu uma espécie de “Democracia Corintiana” por meio da necessidade mercadológica Ipod 30 Gigas.

Ipod na mão esquerda, skate no braço direito e uma bomba começou a ecoar pelo quarto: o celular. A audição e o tato ficam desbaratinados, pois estavam em reunião particular sobre qual som proporcionaria mais adrenalina e vontade de andar de skate. Celular berrando no quarto, atender a chamada virou urgência; o Ipod voltou à escrivaninha e o skate deitou-se no chão.

A conversa foi breve e imprescindível para os contornos do duelo sentimental pela dispersão das energias. Outrem a quem o corpo sentia uma atração especial ligou, conversou e, antes de desligar, marcou um café de fim de tarde. O corpo tinha uma hora para estar no local. A lembrança pregou uma peça e com agentes amorosos que iam do tesão ao amor platônico tão logo convenceu o tato e a audição que andar de skate era bom, mas uns amassos eram melhor e ouvir Ska chegou a ser a melhor coisa para se ouvir até o momento em que a voz d’outro corpo repercutiu ruidosamente pelos amplificadores do celular. Por um momento, toda a tarde pareceu uma tolice e a ligação chegou a ser nomeada como divisora de águas do momentum.

A prudência e a virtude, dois espíritos que controlam o vai-vém sentimental, alertaram que o passeio da tarde seria impossível mediante ao tempo que o corpo teria de diversão, estimado em vinte minutos, os outros quarenta estariam divididos em transporte, banho e escolha de trajes para o encontro.

O tato desanimou na hora, visto que tal sentimento tem predileção por emoções mais duradouras e não cansa fácil. Ao ouvir isso, o conselho auditivo optou por uma música mais tranqüila – o conselho auditivo e o Ipod têm uma relação estreita e, uma vez com o aparelho por perto, escuta-lo é quase uma obrigação.

A visão voltou com tudo e sugeriu uma leitura ou a volta à caixa televisiva para acompanhar o futebol, que a essa altura, deveria estar mais empolgante. O paladar tentou desviar a atenção geral e sugeriu um sorvete, mas foi logo isolado da arena, pois fora ele quem determinou qual o café e, sem muita luta, poderá desfrutar de uns beijinhos durante a noite.

Nos fóruns políticos das vontades, a preguiça tomou o microfone e, com o paladar no bolso, anunciou meia hora de gamorra e contenção dos carboidratos das energias, para que fossem utilizados mais sabiamente durante a noite. O consenso era quase certo, mas a lembrança pregou uma peça em todos ao lembrar de um trabalho chato que deveria ser entregue segunda de manhã, a discussão voltou a se acalorar quando a moral e o caráter alertaram para o futuro profissional do corpo.

Essas discussões dos fóruns políticos das vontades quase nunca afetam diretamente os rumos que os sentidos tomam, diga-se que o corpo em questão é deverás mal formado e as sínteses do cérebro levaram a formação de uma nação imediatista e pouco preocupada com o futuro, com a saúde, em dormir cedo e a ter disciplina. Nesse corpo, a moral é partido nanico e o caráter, mesmo tendo altíssimo valor, é quase sempre atropelado pelas vontades do chamado baixio hiperativo dos sentimentos.

Politicagem de lado, a visão conseguiu uma revista Veja para folhar, a audição escutava Bob Dylan, o paladar bebia água confortável, o tato se confinou ao tique de perna e o oufato estava em coma devido ao nariz entupido. Os minutos correram da Veja à Veja São Paulo. Pausas para ler os negritos e os olhos das páginas, dez minutos se foram como uma trégua.

Corpos familiares em formação genética começaram a querer roubar a atenção do nosso corpo-nação e a guerra foi sendo acalmada pelo fato de as respostas, para saírem automáticas, deveriam contar com as alas mais extremistas dos sentimentos sedadas, para não dispersar.

Assim o tempo correu e a visão perdeu mais tempo tentando convencer o tato de que o jeans 38 era muito mais agradável mesmo com o corpo calçar 40 e a audição relutou mais perdeu o direito de ouvir músicas enquanto o corpo estava desnudo escolhendo seus panos, o fato de não ter bolsos na pele e que escolher uma música e a roupa são atividades que requerem uma atenção exclusiva esclarecem a expulsão dos fones brancos dos ouvidos. Além do mais, a atividade de ir ao encontro pelado em com o ipod em uma das mãos foi considerada por unanimidade como mundana e desprovida de senso lógico. A guerra tomava veias mais mansas, os carboidratos estavam perdendo seu poderio, a munição acabou.

Os sentidos se uniram para que o carro fosse guiado sem presságios e o encontro foi muito bom. O paladar exigiu dentes escovados e que chicletes fossem estrategicamente comprados antes do encontro com o outro corpo – orçamento aprovado pelo fórum das vontades.

4 comentários:

Mariana disse...

Se tudo isso aqui surgiu de um domingo, você já tá bem a frente de todos os 85985985 brasileiros que ainda cultivam o ócio dominical. como eu.

NATH e BRU disse...

Confesso que não li o texto todo pq sou, de fato, preguiçosa...

isso é que ee sair do trabalho e ter tempo, eu diria... hahahaah

bom, se nnao comento do que não teminei de ler, comento sobre a peça de um ato: confusa, porém genial.

por hora, é isso. Sem mais!

nath

José [Zeh] Eduardo disse...

Lindo, c me perguntar.
Eu sou o único que sempre lê seus textos por inteiro. Eu e o Fernando.

Mas o texto é muito bom e verdadeiro.

Abraço!

outdoor disse...

Prezado,

O que seria a razão de trabalhar e viver intensamente a semana toda, senão um aguardo ao tão esperado ócio e preguiça a ser exercitada no domingo. Seja assistindo o Fantástico, Dança no Gelo e a reprises das suas séries favoritas de 10 anos atrás como Seinfeld e Friends no canal Sony, o Domingo é a maior representação social de que devemos ter um dia de descanço e não somente isso, mas um dia de refletir sobre a semana de maneira pessimista e mal humorada. Esse é o verdadeiro espírito da rabujice humana!
Gosto muito dos seus textos prezado, um forte abraço

 
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