quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Chave de ouro

Hoje de manhã me lembrei de como era o mês de dezembro há uns 10 anos, no tempo onde eu não trabalhava e não pegava recuperação no colégio. Antes eu agonizava para que dezembro corresse devagar e eu aprendesse tudo que não tinha estudado para passar de ano sem méritos, mas cantando vitória. Atualmente a reza é para que o mês voe até o natal e às festas. Férias.

Legal mesmo era passar o mês inteiro sem fazer absolutamente nada, decorando a programação da Globo e do SBT, indo até a varanda para ver o por do sol, passeando com o cachorro. Sair nas ruas a esmo, como se para encontrar alguma coisa, alguma rua diferente, uma nova construção, eis uma coisa que eu gostava e nunca soube porque. Uma coisa que só era boa em dezembro, pois o clima ameno era mais convidativo que o de julho e ainda não tinha as viagens de janeiro. Dezembro é o mês do respiro, daquela brisa leve que bate antes da canoa virar na corredeira abaixo, antes do Coyote perceber que perdeu o solo e terá uma queda iminente assim que olhar para baixo.

Essa vertigem típica do último mês do ano, tão aguardado por causa do natal e tão lamentado por ser o mês da reflexão sobre o ano corrente, sempre me causou acidentes pitorescos. Como dizem os mais populares, para fechar o ano com chave de ouro eu sempre dei uma das minhas. Ano passado esqueci do presente de natal de quase toda minha família; no retrasado, na Austrália, agraciei minha ceia de natal com vinho de caixa e pizza Dominos; uma vez, na infância, abri o queixo na quina da mesa; no tempo dos primeiros passos e pedaladas, enfiei minha bochecha no guidão da bicicleta do meu irmão – o que me deixou com uma cicatriz redonda que até hoje parece que fui queimado a ferro. Minha primeira batida de carro foi em dezembro, meu primeiro grande porre (se eu me lembro) também. O mês também era a temporada para (re)colocar aparelhos na boca, tampão nos olhos (sim, eu já usei) e torcer os joelhos. Tudo que pode dar errado comigo, só dá errado no fim do ano – maldita chave de ouro que deixa seqüelas e atrasa minha vida.

Assim me encontro quase que a espera da contusão, da burrada, do gran finale. Digo melhor, eu nunca espero, pois o mês é de superação. Superação no trabalho por ter que fazer tudo apertado junto com as provas finais e superação na faculdade por ter que estudar, passar, trabalhar, viver, etc. Chega dezembro e tenho que teimar por frações de notas que me livraem de dependências e dores de cabeça no futuro.

Nesse mês eu já fiquei sem gasolina no meio da rua, sem dinheiro no restaurante, quebrei meus óculos, perdi viagens, perdi ônibus em plena chuva, perdi o limite do banco. Tudo isso um pouco comum, tudo isso um pouco surpreendente, mas nada me chocou tanto quando romper os ligamentos do meu pé direito ontem no futebol. Justo o direito! Justo em dezembro! Justo agora!

Estou triste, pois me encontro sozinho em casa sem fazer nada, como há 10 anos atrás. Hoje eu não posso sair pelas ruas com meu cachorro, mal posso ir até a varanda. Pior, tenho com meu pé enjaulado numa bota ortopédica por 3 semanas, um chorinho para quem quebra as pernas, mas para mim é a sentença de um ano novo diferente e com muita areia dentro da bota, coceiras, não dirigir, imobilidade, impossibilidade de surfar, impedimento de jogar bola e não vou fazer mais uma porção de coisas que precisam do pé direito.

De todos os males que me assombram em dezembro, nenhum se arrastou até o ano seguinte. Dessa vez vai ser diferente, talvez seja só drama mesmo, talvez eu (que nunca me fraturei) possa estar reclamando de pouco. Tenho motivos para acreditar que é pura zica, azar, mandinga. Ano que vem eu serei eleito a personalidade do ano pela Time ou ganhe algum festival do You Tube e quando me perguntarem da onde veio toda a motivação para que meu ano fosse tão brilhante, eu só vou dizer que resolvi mudar depois de passar a manhã no hospital com o ligamento rasgado.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

O natal do menino avestruz

Eis o menino avestruz dobrando a esquina com seu passo largo e desregulado. Eis o frio do inverno da tv americana que bate e arrepia os cangotes torrados dos brasileiros; chaminés, renas e neve compõem o natal do menino avestruz, o menino que tudo come, o menino que do seu nome cavou a cabeça no chão para fugir do que não quer ver e escapar do frio da televisão.

Quem conhece o menino avestruz sabe bem das suas poucas qualidades, entre as quais destaca-se a capacidade de não voar, a de não ser belo e a de comer tudo, daí o nome de avestruz. Outro dia mesmo, vi o menino avestruz comendo um resto de cachorro quente que estava na sarjeta há uns dias, talvez semanas. Teve outra feita que presenciei o menino avestruz roubando o elastiquinho do cabelo da menina e engoliu como se fosse uma lula a dore dos capilares tão oleosos da sua vítima.

Contaram histórias fantásticas ao pequeno menino avestruz, o menino que tem no seu nome a capacidade de enterrar a cuca e cegar os problemas. Disseram que há 2.000 anos atrás uma quadrilha de ladrões que roubava drogas, armas e eletrodomésticos, com medo de ser pega no flagrante, descarregou tudo numa casinha de um homem simples que viva com sua mulher também simples. Eles tinham acabado de ganhar uma boca extra na casa, a mulher simples tinha parido um naquela noite. Noite ainda sem renas, nem neve, nem trenó, pois a televisão ainda não existia por ali. Foi numa noite como todas as noites. Uma noite em que a família simples interceptou carga roubada, mas consideraram presente; afinal, a quadrilha era do mesmo morro e todos se conheciam muito bem há 2.000 anos atrás.

Muito tocado por esta anedota, o menino avestruz, que enterrava a cabeça para não ver, mas deixava o corpo para apanhar, sempre ficava de braços para o alto enquanto dormia. Desde que ouviu o conto ele dormia meio torto. Noite após noite queria nascer de novo para receber a carga roubada, sem prestações, sem reclame, sem caixas e sem cadastro em lojas. O menino avestruz, que era um saco sem fundo, prometeu para si mesmo que, se viesse a receber tantos presentes dos reis do tráfico, não iria come-los. Iria deixar lá, só para decorar e falar que são dele agora.

Ai, o menino avestruz, que não vê o mundo, pois enterra a cabeça quando atiçado, seria feliz. Feliz porque aconteceu com ele o que só acontecia nas histórias faladas, nas histórias que mudam de boca em boca e, mesmo tentando ser iguais, chegam diferentes para os ouvidos dos meninos como o menino avestruz.
 
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