domingo, 26 de outubro de 2008

Segundo turno*




O casal

Nesse segundo turno eles completaram 3 meses juntos. Conheceram-se através de um amigo, na rebordose das férias. Na praia, Ilha Bela. Logo na primeira noite beijaram-se. Duas semanas depois estavam namorando. Foi realmente rápido. Eles não ligam, e se dão bem.

O casal guardou para este último fim de semana de Outubro a volta à Ilha Bela mesmo. E as eleições? Não importa. Ilha Bela é mais importante; eles não estavam retomando o namoro, estavam fugindo. Seus sonhos valem mais que a tragédia eleitoral. Ela Topou o convite na hora.

No primeiro turno saíram para comemorar 2 meses. Cinema seguido de um japa. Tudo as mil maravilhas. Ele não lembra em quem votou para deputado e senador. Presidente: nulo – está revoltado com o lodo político e, na verdade, não deu a mínima para as campanhas, só votou nulo porque seu pai o fez.

Ela avisou os pais: “Vou pra Ilha. Não vou votar.”, eles hesitaram, mas não ofereceram resistência. Porque, antes de tudo, não acreditam no Segundo Turno, são chatos e conhecem bem o interminável domingo de eleições. Preferem esconder da filha o único domingo onde não há alegria. As pessoas inesperadamente ficam sem fé. Anacrônicas. O domingo é verdadeiramente humilhante. Os pais dela não dão futuro para o namoro, mas iriam juntos com o casal se fossem convidados.

A estrada na sexta estava vazia. O fim de semana prometia Sol. “Vou transferir meu título para a praia.”, quebrava o gelo. Tudo estava perfeito. As mazelas da nação são menores que a necessidade de ouvir a voz do outro. Os escândalos, as falcatruas, as campanhas eleitorais, a banalização do voto; nada disso importava para eles. A paixão e a conveniência da praia - suas lembranças e seu papel na historia do romance - valem mais que tentar salvar o país.

No quarto do hotel havia uma chama. Uma chama de amor e esperança que brilhava aparte das trevas que o país passava. Ele e ela podem ser os mais lúcidos da população. Os mais negligentes talvéz. Ou apenas contentes. Foi o melhor domingo de suas vidas.


O Azarado

Ele nunca teve sorte. Não ganhava nada. Nem bingo de acampamento. Nunca achou nada nas raspadinhas. Nunca encontrou um palito de sorvete premiado. No amigo secreto, aquele colega que esquecia do presente sempre era o que tinha tirado o seu nome.

Para essas eleições, não deu outra: mesário. Mal basta tirar o título e a carta do governo solicitando a sua apresentação para o treinamento dos mesários aparece debaixo do capacho. Parece até de propósito. Ele fez 18 anos e só não pegou exercito porque seu pé era chato e tinha escoliose. Sorte? Azar dele.

Como mesário teve de esquecer a saída com os amigos no sábado. Duas vezes. Segundo turno. Tudo de novo: as mesmas pessoas, o mesmo papo (“Titulo na mão. Documento. É pra deixar o celular desligado, ok?”), a mesma coreografia, a mesma paciência e a mesma mixaria – 12 reais – para o almoço. Mais um domingo que se vai. Azar? Azar dele, “Não há nada pior que ser mesário.”, pensava.

Era inevitável lembrar de alguns rostos. Quando a mesma senhora lhe perguntou quem eram os candidatos – pela segunda vez – ele se segurou para não chorar. Ele deu muita risada daqueles que vieram de pijama. Dos que confirmavam o voto e se arrependiam na hora, pareciam todos com Homer Simpson quando soltava o seu famoso: “Duh!”. Um ou outro candidato a deputado votava na sua seção. Pareceram estar mais desanimados que no primeiro turno, sem broches, adesivos e a comissão de familiares e amigos. Devem ter perdido. “Azar deles.”.

Ele não acredita muito no Brasil. Está acostumado a ver os outros darem mais sorte do que ele, mas sabe que o país precisa de seriedade, não de sorte. Não acha um azar a falta de candidatos, acha uma irresponsabilidade. O povo não é azarado, é falso. Tão falso quanto seus políticos. Comparou o colégio eleitoral a um matadouro. Os bois supostamente sabem que tem poucos minutos de vida. Supostamente devem imaginar que mais dia, menos dia, o matadouro vai chegar. Ficam supostamente normais na fila. Mas se olhar com atenção a essa fila aos olhares supostamente levianos dos bois, o que se vê é a forma mais pura da covardia. Azar deles.


O Homem da praça

Quem é ele? Ninguém exatamente. O homem da praça não é ninguém. Só está lá. Na praça. Ela é a sua ligação com o mundo terreno. Sua verdadeira pátria.

O homem da praça vive na praça desde que a praça foi construída. Dá bom dia a todos. Conhece as crianças que brincam nela e as babás fumantes e fofoqueiras pelo nome. Mas ninguém repara em sua existência. Ele tem seu banco. É dele. Nenhuma outra pessoa se atreveu jamais a roubar-lhe sua propriedade. Em baixo: quinquilharias e um espaço para dormir em caso de chuva. A cima: seu cobertor, garrafas e outros objetos que, para qualquer outro homem, que não o da praça, são lixo.

Estranhou num domingo haver mais vira-latas que gente na praça. Resolveu investigar e passou o dia caminhando pelos arredores. O homem da praça abandonou seu posto de guarda e resolveu ir atrás de seu rebanho.

Passou por alguns colégios eleitorais. Não era notado. Ouvia as pessoas conversando sobre tudo, menos sobre política. Eles disfarçavam. De vez em quando soltavam: “Vamos ver no que vai dar.”, “Dessa vez eu acho que a coisa vai mudar.”. Que coisa? O que eles esperam? O homem da praça achou estar na porta de uma igreja, numa vigília por alguém muito doente. Todos que entravam para rezar vinham apressados e sem muita alegria e saiam frios e dispersos como se o doente não tivesse salvação.

Os restaurantes estavam mais vazios. Tudo estava devagar. Transito só nas portas dos colégios. Flanelinhas faturando alto. Pela primeira vez achou que estava fora de alguma coisa. Voltou à praça. “O que está acontecendo?”, perguntou ao homem da guarita. “Eleições? Ainda bem que eu não tenho que votar.”. O homem da guarita não perguntou, mas tinha certeza que se o homem da praça tivesse algum documento, não seria um título de eleitor.


O Esquecido

“Caramba, a cidade ta vazia! Que horas são?”. As oito horas da manhã. Pós after hour a cidade parecia não ter acordado. A Paulista estava às moscas. Por segundos, achou estar no filme ‘Extermínio’ e concluiu que ainda estava um pouco bêbado. Foi pra casa. Dormiu.

Acordou, era quatro da tarde. Estava de ressaca. Olhou na janela e a cidade ainda não tinha acordado para o domingo. Estranhou e perguntou ao pai. “Eleições! Hoje? Puta merda!”. Jogou-se no armário. Colocou o primeiro par de roupas que encontrou na sua frente. Em dez minutos estava dentro do carro. Deveria votar no Itaim, onde morou até os 17. Porém, havia mudado para Perdizes, fazia já três anos. Pelo menos a cidade estava tão morta quanto no período da manhã.

Quatro e meia. Chega ao colégio eleitoral. Ainda descabelado e lutando contra seu rosto para arrancar-lhe as últimas remelas e aparentar uma cara de quem acordou as nove da manhã tomou café, almoçou com a família e estava tranquilamente exercendo seu dever como cidadão durante um domingo de segundo turno. Esse olhar durou pouco. Ao passar uma garota atraente seus olhos correram-lhe o rosto. Dirigiram-se dos seios às coxas, como de praxe. Um detalhe nela o chamou realmente a atenção. Ele era pequeno, notável e intransferível. “O título! Esqueci o título.”

Ele ficou imóvel. Seu olhar aparentemente despretensioso se perdeu. Ele se sentiu desconectado ao lugar que estava. Sem o título tudo estaria perdido. Não iria votar. Todo o seu esforço para chegar a tempo seria em vão. Ele tinha boas intenções. Estudou os candidatos. Prestou atenção nas campanhas e tentou alertar os mais dispersos a não votarem em candidatos engraçadinhos, famosos, bonitos, ridículos. Todos sem conteúdo. Para ele, apenas alguns – poucos mesmo – mereciam estar na câmara. Não que gostasse de política. Mas acha isso um ato de amor próprio ao seu país.

Saiu correndo no meio de todos. Voltou pra casa em poucos minutos, furou todos os faróis necessários, cortou outros carros e estacionou na entrada da garagem do seu prédio. No seu quarto não achava o título de jeito nenhum. Revirou tudo. Já eram cinco.

Ficou ainda mais desconectado e não sabia o que fazer. O interfone tocou. Seu carro estava impedindo que os moradores entrassem no prédio. A buzina do vizinho mal humorado lhe trouxe de volta a realidade. No carro ele procura um cigarro. Está trêmulo. O que irá acontecer com o seu futuro? Será preso? Deverá pagar alguma multa? Será mesário? Não poderá tirar passaporte? Não poderá concorrer para nenhum cargo público? A policia irá investigar sua casa? O que acontece quando deixamos de ser cidadãos? Afinal, o que é exercer a cidadania? É um domingo chato, uma lei seca, um voto obrigatório, um segundo turno?

Dentro do porta-luvas, junto ao plástico do maço, estavam seu título, sua carteira de habilitação e alguns trocados.

Como foi o seu domingo?

Escrito em 2006.

- Colagem de Robert Rauschenberg, ídolo pop.

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