terça-feira, 3 de novembro de 2009

Extremo neurótico

[...]Outro dia mesmo lá estava eu no cartório ouvindo a conversa alheia, coisa que gosto muito de fazer. Tenho dó na maioria das vezes; tanta burrice, tanta falta de noção das coisas – uma perda de tempo, pensaria você, leitor, mas isso não verdade, ouvir os outros é uma arte. O bom ouvidor é discreto como uma parede e interpreta tudo como um estrategista de guerra.

Aquele que sabe escutar e interpretar o papo dos outros, consegue ouvir qualquer coisa sem perder a postura. Por exemplo, foi depois de presenciar uma série de términos de relacionamento que eu pude terminar o meu numa boa e, acreditem, não tremi nem amoleci ao ouvir todos os tipos de blasfêmias e xingamentos. Ninguém merece passar por isso, muitos perdem o controle nessas horas, eu não. Fui íntegro, parecia que estava com a cabeça na Lua enquanto a louça lá de casa ia se espatifando no chão. Só acordei com os gritos da vizinha, que ameaçava chamar a polícia caso a louca da minha ex-mulher não parasse de espernear contra o fantasma do seu marido – ninguém acreditou que eu estava ali, eu não elevei o tom em nenhum momento, eu nem mesmo elevei minha carcaça do sofá. Pobre da minha ex-mulher, que teve que quebrar 70% dos vidros e porcelanas da casa para se acalmar.

Passado esse episódio, nunca mais me abalei por nada. Deixei de ter dó, de sentir raiva, nem alegria eu conseguia exalar. Talvez você considere essa indiferença uma característica essencial para o homem moderno, imerso num mundo sem compaixão, do qual ele deve ser frio para crescer.

Não é o meu caso: sou frio porque não consigo ser outra coisa. Não tenho mais aquele sal que deixava as pessoas intrigadas com minha personalidade. Minha expressão facial lembra um quadro de natureza morta, bem morta. Meus gestos são invisíveis. As pessoas me chamam pelo nome, demoro para responder e minha voz é sempre a mesma. O que posso fazer? Sou uma pessoa que, de tanto ouvir as outras, acabou perdendo a própria chama de vida.

Mas não me deixe muitos dias sem ouvir a trova dos populares. Aí sim enlouqueço! Começo a desenvolver trejeitos próprios, aos poucos perco minha típica inércia e crio emoções. Odeio isso, fico vermelho, pisco o olho esquerdo umas 5 vezes quando vejo alguma coisa que me irrita.

Preciso das pessoas, da massa que vem e vai sem me deixar sozinho por um segundo. Costumo andar com um gravador e durmo ao som das minhas fitinhas. Algumas não me deixam pregar os olhos de madrugada –o barulho das conversas se sobrepondo fazem a cortina das minhas noites perfeitas.

Ligo o som, fecho os olhos. Não preciso de mais nada.

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